Ruídos de Poitiers
Considerações sobre os Ruídos de Poitiers19
Extraídas do Journal de la Vienne, de 22 de novembro de 1864

Conhece-se a lógica dos adversários do Espiritismo. A passagem seguinte, de um artigo assinado por David, de Thiais, fornece uma amostra.

“Amigo leitor,

“Como eu, deveis ter em vosso escritório uma pequena brochura (in-8o) do Sr. Boreau, de Niort, cujo título – Como e por que me tornei espírita – traz o fac-símile do autógrafo da escrita direta de um Espírito familiar.

19 Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”, p. 513.

“É a mais curiosa das histórias: a de um homem sincero, convicto, amante das coisas elevadas, mas que diviniza suas ilusões e incessantemente corre atrás dos sonhos, crendo captar a realidade. Perseguindo com Jeanne, a sonâmbula, um tesouro enterrado num antigo campo de batalha da Vandéia, ele encontra,em vez do ouro que lhe é prometido, Espíritos trapaceiros, malévolos, temíveis, que quase matam de terror a sua companheira e o expõem às mais dolorosas angústias. De repente ele se torna espírita, como se as aparições que o obsediam reproduzissem os milagres da lâmpada maravilhosa e, ao mesmo tempo, lhe prodigalizassem todos os bens do corpo e da alma.

“É preciso que a ficção seja uma das maiores necessidades do gênio humano, para que semelhantes crenças se tornem possíveis.

“Há aí gênios farsistas, que zombam; Espíritos cruéis,que ameaçam e batem; Espíritos grosseiros, com a boca sempre a injuriar, e a gente se pergunta o que eles vêm fazer aqui, já que a morte não os burilou em seu temível crisol.

“Aí também se entretêm com parelhas e quadrinhas de um bom anjo, que não trouxe do céu os segredos de sua poesia, mostrando o quanto uma idéia preconcebida nos leva longe no caminho das ilusões.

“Em matéria de Espiritismo, o Sr. Boreau tem a fé ingênua do homem simples; chega mesmo a gostar dos que o batem e o molestam. Nada temos a dizer quanto a isto, tanto mais quanto sua brochura contém páginas muito divertidas, provando que pode dispensar facilmente os Espíritos exteriores, pois o seu lhe deve bastar muito bem.

“Diremos apenas que os fatos que ele relata não são de ontem. A gente ainda se recorda da emoção que se apoderou da cidade de Poitiers, quando da formidável artilharia ouvida na Rua Saint-Paul, no ano passado. Uma longa procissão de curiosos rodou durante oito dias em volta dessa casa assombrada pelo demônio; a polícia ali estabeleceu o seu quartel-general e cada um espreitou o voejar dos Espíritos, na esperança de surpreender os segredos do outro mundo; mas só viram fogo. Os Espíritos só se revelam aos crentes fazendo todo o barulho do mundo. (Revista Espírita, fevereiro, março e maio de 1864).

“Coisa estranha, leitor! essas paragens parecem ter o monopólio desta raça barulhenta e zombeteira.

“Gorre, célebre médico alemão, morto em 1836, ensina no tomo III de sua Mística – pelo menos é o que diz Guillaume d’Auvergne, bispo de Paris, falecido em 1249 – que, pelo mesmo tempo, um Espírito batedor se havia introduzido numa casa do dito bairro de Saint-Paul, em Poitiers, e que ali jogava pedras e quebrava os vidros.

“Pierre Marmois, professor de teologia em nossa universidade, autor do Flagellum maleficorum, conta o que se passava, em 1447, na Rua Saint-Paul, numa casa na qual certo Espírito, entregando-se às suas evoluções ordinárias, lançava pedras, mudava os móveis de lugar, quebrava os vidros e até batia nas pessoas, embora delicadamente, sem que fosse possível descobrir como atuava.

“Conta-se que naquela ocasião Jean Delorme, então cura de Saint-Paul, homem muito instruído e de grande probidade, veio, acompanhado de algumas pessoas, visitar o teatro dessas estranhas proezas e, munido de velas bentas e acesas, água benta e água gregoriana, percorreu todos os aposentos da casa,aspergindo-os e exorcizando-os.

“Mas todos os exorcismos foram impotentes; nenhum diabo se mostrou. Contudo, a partir daquele momento, o Espírito maligno deixou de se manifestar20.

“Assim, com alguns séculos de distância, os mesmos fenômenos espíritas se repetem três vezes na mesma cidade e no mesmo bairro. Mas, que se deve concluir disto? Absolutamente nada. Com efeito, não há qualquer conseqüência importante a tirar de um ruído vão, de brincadeiras pueris, de fatos lamentáveis que, evidentemente, não podem ser atribuídos aos Espíritos, corpos imponderáveis que, pairando sobre o mundo, devem escapar às enfermidades humanas, aproximando-se incessantemente da luz e da bondade de Deus.

“Aliás, esta questão não está em discussão. Cada um é livre de escolher os seus Espíritos, de os adorar à sua maneira, de lhes emprestar uma virtude, um poder, um caráter conforme às suas aspirações. Somente preferimos, aos gênios um tanto materiais da escola moderna, as criações encantadoras, nascidas da poesia dos dias antigos e que, marchando fraternalmente com o homem no limite dos dois mundos, lhes davam tão docemente a mão, para os aproximar das fontes da vida imortal e da felicidade sem-fim.

“Para nós, nenhum Espírito batedor valerá essas adoráveis imagens pintadas pelo gênio de Ossian sobre as nuvens vaporosas do Norte, cujas harpas melancólicas ainda fazem vibrar tão bem as fibras mais íntimas do coração. Quando a alma levanta vôo, tem o cuidado de aliviar suas asas e repele tudo quanto as pode tornar mais pesadas.”

Somos reconhecidos ao autor deste artigo por nos haver dado a conhecer esse fato notável, que ignorávamos, do mesmo fenômeno, reproduzido na mesma localidade com intervalo de vários séculos. Sem o suspeitar, ele não podia servir 20 Vide a brochura do Sr. Bonsergent, na Biblioteca Imperial. melhor à nossa causa, porque desta repetição ele pretende tirar um argumento contra as manifestações. Parece-nos que em boa lógica, quando um fato é único e isolado, não se lhe pode deduzir conseqüência absoluta, já que pode ser devido a uma causa acidental, ao passo que, quando se repete em condições idênticas, é que depende de uma causa constante; em outras palavras, de uma lei. Buscar essa lei é dever de todo observador sério, porque ela pode levar a descobertas importantes.

Que, apesar da duração, do caráter especial e das circunstâncias acessórias dos ruídos de Poitiers, algumas pessoas tenham persistido em os atribuir à malevolência, compreende-se até certo ponto; porém, quando se repetem pela terceira vez, na mesma rua, com vários séculos de distância, haverá, por certo,matéria para reflexão, porque, se há mal-intencionados, é pouco provável que em tão longo intervalo tenham escolhido precisamente o mesmo lugar para teatro de suas façanhas. Entretanto, que concluir disto? Diz o autor: Absolutamente nada. Assim, de um fato que emociona toda uma população, várias vezes repetido, não há nenhuma conseqüência importante a tirar! Realmente, é uma lógica muito singular! “São ruídos vãos,divertimentos pueris que, evidentemente, não podem ser atribuídos aos Espíritos, corpos imponderáveis que, pairando sobre o mundo,devem escapar às enfermidades humanas, aproximando-se incessantemente da luz e da bondade de Deus.” Então o Sr. David crê nos Espíritos, já que descreve os seus atributos com tanta precisão. Onde hauriu tais conhecimentos? Quem lhe disse que os Espíritos são tais quais ele os imagina? Tê-los-á estudado para decidir assim tão categoricamente a questão? Diz ele que os Espíritos “devem escapar às enfermidades humanas”; às enfermidades corporais, sem dúvida; mas às enfermidades morais, também? Então ele crê que o homem perverso, o assassino, o bandido, o mais vil dos malfeitores e ele estarão no mesmo nível quando forem Espíritos? De que lhes terá servido ser honestos durante a vida, desde que,após a morte, sê-lo-ão como se o tivessem sido? Uma vez que os Espíritos se aproximam incessantemente da luz e da bondade de Deus, o que é mais verdadeiro do que talvez creia o autor, então houve um tempo em que eles estavam longe, porque, para se aproximar de um objetivo, é preciso que dele se tenha afastado. Onde o ponto de partida? Só pode estar no oposto da perfeição,isto é, na imperfeição. Seguramente não são Espíritos perfeitos que se divertem com semelhantes coisas. Mas se os há imperfeitos, que há de espantoso que cometam malícias? Do fato de planarem sobre o mundo, segue-se que dele não se possam aproximar? Seria supérfluo levar mais longe essa refutação. Sendo mais ou menos equivalentes todos os argumentos dos nossos adversários, nem mesmo teríamos refutado este artigo, não fosse o precioso documento que encerra e pelo qual novamente agradecemos ao autor.
R.E. , maio de 1865, p. 185